Há ideias que atravessam a história como rios subterrâneos. Invisíveis à superfície, mas profundamente enraizadas no solo da cultura humana. Uma dessas ideias é a de que Deus não seria uma entidade exterior, mas um arquétipo – uma imagem profunda, uma projeção nascida da psique humana em sua ânsia ancestral por sentido.
A proposta de que Deus é, antes de tudo, uma criação simbólica, não pretende negá-lo, mas desnudá-lo. Desvesti-lo de seus mantos de poder institucionalizado para contemplá-lo como um reflexo da alma. O ser humano, confrontado com a vastidão do desconhecido – os raios, os astros, a morte, o amor, a origem – ergueu a cabeça ao céu e viu nele o espelho de suas próprias inquietações. Criou, então, o divino à sua imagem e semelhança, ao contrário do que afirma a tradição religiosa.
Esse Deus-arquétipo é maleável, múltiplo, contraditório. Em tempos de guerra, é o Senhor dos Exércitos. Em tempos de escassez, é o Provedor. Em tempos de desespero, é o Pai misericordioso. Deus é uma tela onde pintamos nossas carências, nossos medos e nossos sonhos. Jung compreendeu isso com precisão ao descrever o arquétipo do Self como a totalidade da psique, a imagem de Deus em nós. Não um deus factual, mas uma presença simbólica que estrutura o psiquismo humano.
As mitologias, os dogmas, as escrituras – todos eles são tentativas poéticas de conter o inominável. Mas o indizível escapa, e o que resta é o símbolo. E o símbolo é vivo: pulsa com os afetos da humanidade. O Deus do deserto não é o mesmo da floresta tropical. O Deus do monge não é o mesmo da mãe que chora no parto. Cada cultura molda seus deuses como molda seus heróis: para explicar, justificar ou transformar a dor do mundo.
Essa abordagem, porém, não é isenta de riscos. Reduzir Deus a projeção pode ser visto como profanação por aqueles que ainda esperam o milagre, o juízo ou o perdão. Mas talvez o verdadeiro sagrado resida justamente aí: na capacidade humana de criar símbolos tão poderosos que, ao serem criados, passam a nos criar.
Não é blasfêmia enxergar Deus como arquétipo. É, talvez, o mais profundo ato de humildade: reconhecer que o céu que apontamos com o dedo é também o abismo que carregamos dentro do peito. O Deus que buscamos lá fora é o eco do silêncio interior. E, ao compreender isso, não o matamos — o reencontramos.
Nesta resenha da ideia, que é ao mesmo tempo crítica e reverência, vislumbramos um Deus que não está fora, mas em torno — e dentro. Não um velho nos céus, mas um espelho arquetípico onde a humanidade tenta se ver com nitidez. E talvez, nesse reflexo, resida não a resposta, mas o verdadeiro mistério.
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